segunda-feira, 26 de dezembro de 2011



CURIOSIDADES HISTÓRICAS


A ESTRANHA MEDICINA DOS EXCRETOS


O negro nem sempre tinha a saúde cuidada pelo senhor. Daí lançar mão de tudo que se dizia então favorável aos males do corpo. A medicina dos excretos dominava as senzalas, principalmente os escravos que trabalhavam no campo – na planta, limpa e corte de cana. Dominava entre aqueles que trabalhavam nos baguês e na agricultura em geral.



A falta de médico e farmácia era absoluta. Aliás, não se deve estranhar isso não, porque ainda hoje, mormente na Várzea, onde as usinas enriquecem os seus donos e tornam cada vez mais miserável o operário rural, as nossas fábricas não se importam com a saúde dos párias que morrem e que fazem o poder dos industriais. De modo que então, mais do que agora, o escravo tinha de voltar-se para os remédios que a própria experiência aconselhava como ótimos.


Assim é que os doentes de olhos, quando não se serviam de cuspo, se utilizavam da própria urina para lavá-los de manhãzinha. As inchações eram curadas com emplastos de fezes de vaca, enquanto a sezão desaparecia com o purgante de "batata, cabeça de negro e urina de menino macho". Se eram as dores de estômago e fígado, tinham lá sua receita: urina de dois dias, fermentada, além de um pouco de água morna para temperar.

A impingem era curada pelos negros com o cuspo de quando acordavam e se levantavam antes do sol nascer. Tinha assim mais força. A bosta de cachorro se tomava em forma de chá, curando febre maligna, sarampo, aristim. Quando o escravo sofria um talho sangrento lhe era aplicada bosta seca de burro. Nas feridas purulentas servia o emplastro de esterco de boi.

Ainda agora se entopem de estrume as bicheiras do gado.

Com a chinica de galinha se curava panarício. Mário de Andrade salienta que ela também se aplica nas dentadas de gente, "sendo que, além de cura, o remédio mágico derruba os dentes de quem mordeu", parecendo até catimbó. E por falar nisso, no caso de uma hemorragia, "tomava–se o sangue de palavra" – ato que revestia a solenidade, com sinais cabalísticos e ao qual só recorre em circunstância extrema.

A ingestão, o clister, misturas, pílulas, pós, emplastros, unguentos, infusões – tudo era feito com urina ou bosta ou cuspo como elemento indispensáveis e preponderantes. Para as dores na perna e no baixo ventre, nada com esterco de vaca ainda úmido (os doentes de apendicite fariam melhor negócio não se arriscar a operações melindrosas), aplicavam-no envolvido em folha de bananeira. Também servia em forma de cataplasma, nos tumores testiculares, depois de passar pelo fogo cozinhando com farinha de mandioca.

O negro que sofresse de erisipela ficaria na certa se usasse banhos de urina de mulher grávida. Esses remédios escatófilos não eram discutidos porque os efeitos de sua aplicação autorizavam a fé dominante. Mordeduras de cobra, lacrau, aranha caranguejeira se curava era com esterco de bode misturado com banha de tatu. Fazia-se um chá que se tomava com purga de efeito imediato.

Quando acontecia uma pessoa sofrer uma luxação a velha escrava da senzala vinha com um novelo de linha e uma agulha, colocando-os sobre o lugar desconjuntado. Então fingia coser atravessando a agulha no novelo em diversos sentidos, benzendo-se e dizendo em voz baixa: "O que coso eu? carne quebrada, nervos tortos, já desconjuntado, atufá". Botava um unguento no qual entrava a urina de menino e azeite de dendê. Essa operação de carne quebrada se faz ainda com ligeiras modificações.

Era o negro comumente atacado de disenteria, bouba, espinhela caída, bicho-de-pé, raro sendo aquele que vomitava sangue. Tudo faz crer que a tuberculose não fazia muita vítima. O famoso bicho-de-pé se tirava com espeto, faca de ponta ou rucega. E depois se entupia o buraco com rapé ou cal de parede ou esterco de boi em pó.

Nas primeiras levas de estrangeiros, chegados em meados do século passado, dizem que foi verdadeiramente lastimável o estado em que ficam galegos e italianos, com os pés, as mãos, os joelhos, cotovelos, nádegas e até as faces crivadas do terrível parasita. O bicho-de-pé é originário da África assemelhando-se a uma pulga pequeníssima provocadora de extraordinária coceira local. Na Paraíba ele vive epidemicamente.

Os excretos exercem influência místicas. A febre aftosa não era então conhecida sob tal denominação. Mas, pelas informações que temos não podia ser outra peste que, vez por outra, atacava a criação com os mesmos sintomas. As reses não doentes traziam uma cruz de cinzas na testa para se livrar da febre mortal. O mais interessante é que o sinal era feito na manhã da sexta-feira, enquanto a cinza se originava de urina de menino, esterco de morcego, além de água em que um coxo se tivesse banhado. São influências demopsicológicas bem caracterizadas. Também para se evitar a varíola naquele dia, isto é, sexta-feira, o escravo tomava chá de cebola branca temperado com urina de mulher feita, fazia orações a São Sebastião e atochava os ouvidos com algodão embebido em azeite de carrapato. O mal afugentava-se.

Aquele que tivesse culto aos astros, sofrendo de linfatite, com os gânglios enfartados, em vez de tônicos podia "cortar a íngua à lua" que ficava inteiramente bom. E que não se esquecesse de botar no café ou no primeiro líquido que bebesse de manhã seguinte um pouco de fezes de carneiro pulverizadas.

Quando o negro se dava ao prazer noturno da caça ia com sua tanga ensopada no sangue ou excremento de veado, porque assim a caça não se espantava; era surpreendida de cheio. Aí não existe nenhuma influência estranha, desde que se sabe ser veado um admirável farejador e que devia também sentir o cheiro de sarro de cachimbo (eis a receita: sarro, fezes de porco e urina de gente) que o caçador trazia por trás da orelha, não se sabe para que, talvez para ingerir em pequenas doses. A suposição não é incerta, pois se sabe que o escravo, em tais condições, se alimentava com farinha, bebia água dosada com urina nunca deixando de colocar num pau um pedaço de fumo mapinguinho. Isto ia com homenagem ao sucesso da caçada, embora o cheiro que o caçador desprendia não fosse lá dos melhores.

E por falar em cheiro, as negras que serviam a mesa da casa grande utilizavam esterco de boi, cozinhando com folhas de hortelã, ou macaçá, ou manjericão, sabem para que?, para evitar o excessivo budum dos sovacos. 

Vê-se que o boi fornecia o maior e o melhor material para fazer face às necessidades dos doentes abandonados dos senhores e que tinham na medicina dos excretos uma porta aberta para a salvação do seus males nem sempre curáveis. As poias de bosta tinham ainda outras aplicações que se presumiam úteis. Quando frescas as fezes de boi serviam para os emplastros quando secas para fazer fogo, e, principalmente, para fins industriais pois que era empregada até para refinação de açúcar nos banguês. Não eram todos os senhores que se utilizavam delas para tal fim. 

O meu informante, na sua linguagem popular, assinalava, "eram os esporas", que significa dizer, os mais pegados ao dinheiro, os mais fonas, os mais chifres de cabra.


(VIDAL, Ademar.  Costumes e práticas do negro. In CARNEIRO, Edison.Antologia do negro brasileiro)


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